Da estante: Bisa Bia, Bisa Bel

“Sabe?
Vou lhe contar uma coisa que é segredo. Ninguém desconfia. É que Bisa Bia mora comigo. Ninguém sabe mesmo. Ninguém consegue ver” p. 5

Um livro, que começa com o narrador te contando um segredo, já cria grandes expectativas de leitura e logo te prende completamente para o que vem a seguir. Com o livro escrito por Ana Maria Machado não foi diferente disso e a narrativa, que promete ser surpreendente em sua construção, também consegue transmitir mensagens fortes e repletas de significados.

Essa foi uma das poucas leituras com as quais me deparei já adulta e pela qual lamentei não ter tido esse encontro na minha adolescência. Tenho certeza de que teria me marcado muito no período da juventude, assim como conseguiu me marcar bastante agora enquanto adulta.

Acontece que a história é sobre uma menina chamada Isabel, que, em um dia de arrumação em casa, encontra um retrato de sua bisa – a bisa Bia. Ao ver esse retrato, Isabel resolve ficar com ele pelo tanto que gostou da imagem da menina e começa a andar com a fotografia por tudo quanto é lugar. O que surpreende aqui é que ela estabelece, pelo único retrato de sua bisa, uma relação de amizade e de múltiplas descobertas do passado, dos costumes e pensamentos da época, já que em sua imaginação, ela exerce um constante diálogo com a bisavó.

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“Fiquei olhando para o retrato e logo vi que não podia chamar de Bisavó Beatriz aquela menina fofa com jeito de boneca. Não tinha cara nenhuma de bisavó, vê lá… Dava vontade de brincar com ela” p. 11

“Só depois que eu fiquei conhecendo melhor Bisa Bia é que soube a verdade: ela não gosta de ver menina usando calça comprida, short, todas essas roupas gostosas de brincar. Acha que isso é roupa de homem, já pensou? De vez em quando ela vem com umas ideias assim esquisitas” p. 12

Permeada pelas relações de afeto, amizade e cumplicidade entre essas personagens, assistimos ao desenvolvimento da menina se descobrindo em seu tempo, repensando o passado e buscando construir sua identidade como pessoa, como mulher. Nesse trajeto, passamos pelos diversos papéis que a mulher desempenhou na sociedade, através de discussões e questionamentos sadios e tomados de compreensão. O trecho a seguir mostra não só o afeto que permeia essa relação, mas simbolicamente o quanto da bisa Bia ficou na Isabel, na metáfora da tatuagem veremos as influências e críticas existentes entre elas nessa amizade.

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“- Eu guardei ela grudada na minha pele, junto do meu coração, muito bem guardada, no melhor lugar que tinha. E ela gostou tanto – sabe, mãe? – que vai ficar aí para sempre, só que pelo lado de dentro, já imaginou? Também, era fácil, porque eu tinha corrido e estava suando muito, o retrato dela ficou molhado, colou em mim. Igualzinho a uma tatuagem. Ela ficou pintada na minha pele. Mas não dá pra ninguém mais ver. Feito uma tatuagem transparente, ou invisível.
(…)
– Depois ela passou pra dentro de mim, mãe, já pensou? Uma tatuagem por dentro, invisível e transparente, no meu peito. Agora Bisa Bia está morando comigo de verdade. Bem lá dentro.
Fechei a torneira e acrescentei:
– Morando comigo pra sempre” p. 26

A narrativa também tematiza a preocupação com o futuro do país, trazendo a ideia de conscientização das próprias crianças para construirmos um país melhor, através da contribuição de cada cidadão em sua profissão, em seu papel na sociedade.

“Aí vovô explicou que um dia íamos poder, mas falou que quem quer construir os tempos novos geralmente não é compreendido, é perseguido e sofre muito, e era isso que estava acontecendo com meus pais” p. 74

“- Nesse dia eu entendi que o vovô ia sempre existir dentro de mim… Depois de muito papo, vovô disse que cada vez nós tínhamos que fazer força para melhorar, para deixar um mundo melhor para nossos filhos, como papai fazia no trabalho de jornalista, e como mamãe fazia dando as aulas dela. Disse que estava muito orgulhoso dos meus pais e que o exílio estava sendo uma espécie de preço que a gente tava pagando para que o futuro fosse melhor…

(…) Mas eu vi também como, em algumas coisas, nosso tempo já está sendo melhor do que o dele. E fiquei pensando nisso: como vai ser o mundo dos nossos netos? E dos nossos bisnetos?” p. 75

Com linguagem bastante acessível e próxima da oralidade, a história ganha fácil o leitor, surpreende com o enredo e – aqui eu me seguro bastante para não dar spoiler – uma parte lindíssima do livro, que deixarei por conta de leitura de vocês mesmos!

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Deixo essa última imagem dessa parte que eu fiquei com muita vontade de comentar – mas não comentarei -, para vocês tentarem imaginar o que ela representa e ficarem bem curiosos para ler esse livro!

As ilustrações do livro são de Mariana Newlands e são compostas por cores vivas e traços simples, que remetem aos desenhos infantis, aproximando o leitor ainda mais do universo juvenil. Pelos traços da ilustradora, conhecemos Isabel, bisa Bia e outros personagens desse enredo.

Apenas fiquem sabendo que as relações de presente, passado e futuro se estabelecem e se entrelaçam de forma surpreendente do início ao final do livro, a bisa Bia tem a função de transmitir conhecimento e tradição para Isabel, nessa busca por sua própria identidade, ao mesmo tempo que a menina terá um papel inesperado. É bonito ver Isabel se desprendendo de modelos preestabelecidos para ela enquanto menina, e perceber sua vontade e curiosidade de se descobrir como pessoa. 

“É que eu também sou inventora, inventando todo dia um jeito novo de viver” p. 77

“Mas também tem uma outra coisa: quando eu começo a ficar muito moderna, muito decidida, a me sentir muito forte e muito capaz de enfrentar tudo, às vezes me dá uma “recaída de bisavó”, como Neta Beta chama. Quer dizer, quero dengo, descubro que sou fraca numas coisas, tenho vontade de pedir colo e procurar alguém que me ajude, passe a mão na minha cabeça e tome conta de mim um pouquinho. Não dá pra ser mulher-maravilha… Vou descobrindo eu dentro de mim é uma verdadeira salada” p. 68

Um livro de grande sensibilidade e tato na abordagem de questões tão enrijecidas. É leitura para todos os tipos de leitores, viu? Se você já leu esse livro, não deixe de me contar aí nos comentários o que achou dele!


2 comentários sobre “Da estante: Bisa Bia, Bisa Bel

  1. Fiquei com muita vontade de ler! Já salvei na minha listinha do Skoob. E sua escrita sempre fazendo a gente se encantar mais pela literatura. Beijo grande!

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